Aquilo que escapa à normalidade (o que vem a ser isso?) das coisas é tido, no mínimo, como engraçado. Em alguns casos, esquisito, abominável ou somente vexatório. Há situações nas quais nos envolvemos despretensiosamente, sem saber que seu desenrolar poderá ser agudamente constrangedor. Alguns as chamam de "micos". Prefiro achar que são descaminhos fundamentais ao desafio de ver mais um nascer do sol. Eis algumas dessas situações:
Não passava dos meus dez anos, morava com minha avó. Certa feita, ela me mandou ao mercado comprar um coador de café, daqueles tradicionais, feito de pano. Encarreguei-me da empreitada e segui despreocupado. Voltei para casa sem o tal coador. Inconformada com tal situação, na qual ela não acreditava (como não haveria coador naquele mercado?), mandou-me de volta ao tal estabelecimento. Procure direito, disse ela. Passei os olhos atentamente sobre toda a seçao de utensílios domésticos e nada. Vasculhei todo o mercado e me convenci de que ali não havia coador de café, ora essa! Foi então que, apenas para desencargo de consciência, resolvi perguntar a uma funcionária do mercado sobre tal produto. Não demorou um minuto e ela voltou com o bendito na mão. Eu tinha visto aquele utensílio, mas, em hipótese alguma, aquilo me pareceu um coador. Não era igual ao que eu via em casa. Daquela cor? Não sabia eu que, quando novo, o coador é branco.
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Ainda em minha meninice, gostava muito de jogar bola no meio da rua, em frente a minha casa. Jogava a qualquer hora do dia ou da noite, isto é, sempre que podia. Numa dessas noites, estava eu no auge de um jogo, quando ouço minha avó (novamente ela) me chamar. Pediu que eu fosse até a igreja levar um recado importante para uma das freiras, amiga da família. Era horário de missa. A igreja estava quase cheia. Cheguei à porta exatamente quando estava se formando a fila para a Comunhão. Havia pouquíssimo tempo que eu tinha aceito o sacramento da Eucaristia. Para menino com pouco tempo de comunhão, hóstia é símbolo de status. Não titubeei, entrei na fila. Não assistira a missa, estava sujo dos pés à cabeça e visivelmente suado. Mas eu, naquele instante, provavelmente acreditei que ninguém me notaria, apesar de perceber todos os olhares que se voltaram para minha figura inusitada. O padre, não sei porque cargas d'água, não negou-me a hóstia. A recebi e fui direto para o canto da igreja onde estava a freira. Preciso falar com a senhora, eu disse. Eu também preciso muito falar com o senhor, rapazinho, respondeu, me puxando para a sacristia pelo braço. Discorreu um sermão de quase meia hora sobre a importância do sacramento da Eucaristia, sua ritualidade, seu significado cristão e coisas afins. Saí de lá com um nó na garganta e acabei esquecendo de dar o recado de minha avó.
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A confusão de pessoas não poderia faltar. Estava eu no portão de casa (mais uma vez, na mesma época da infância), quando avistei num bar, a uns vinte metros, um rapaz de costas, muito, muito parecido com um irmão meu, o qual não via há bastante tempo e do qual eu sentia muita falta. Depois de analisar uns segundos, conclui (apesar de achar improvável) que aquele sujeito era de fato o meu irmão. Caminhei até onde ele estava e, de sopetão, tasquei-lhe um abraço apertado, por trás mesmo, cruzando os braços na altura da barriga do meu suposto irmão. O coitado cuspiu metade da água que bebia e engasgou-se com a outra metade, o que lhe avermelhou a face. Virou-se com um olhar misto de estranhamento e fúria (acentuada pela vermelhidão do engasgo). Eu desatei meus braços e, sob a expressão risonha do dono do bar, afastei-me como se nada houvesse ocorrido. Decepcionado. Não era meu irmão.
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Se a vida fosse inteiramente "normal" e "perfeita" em todos os seus movimentos, creio que ninguém suportaria viver.